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univers revers

No ombro quebrado  onde a dor morava e os tendões já não respondiam ao apelo claro do movimento, a ciência decidiu inverter o mundo. A bola deixou o osso do braço e foi morar na escápula, o encaixe trocou de lugar, como se o corpo aceitasse uma nova lógica. O manguito, antes protagonista, silenciou,  e o deltóide - músculo esquecido, fiel - assumiu o gesto de erguer o braço, até que o desejo se cumprisse. Não foi milagre,  foi engenharia, ciência aprendendo a lidar com a  perda, ensinando o corpo  a recriar a vida de modo diverso. No universo reverso do ombro, o que de nada mais servia deu lugar ao horizonte possível. No espaço entre dor e movimento, nasceu agora um gesto simples: saber de novo a abraçar o mundo.

cada dia

cada dia se cala um punho de luz a queimar dentro silêncio não é fim animal eléctrico  a respirar fundo sangue das coisas corpos escritos o centro do nervo a trabalhar dentro cada dia se cumpre lavaredas de horas um rosto exaltado  a língua em brasa  os sons nascem antes da boca os gestos ardem antes do sentido (o dia irrompe  em sombra - ambrósia  da  matéria viva) cada dia  dentro do poema

in limine

teu olhar habita (fundo) o universo espelho sem medida (respira) a curva invisível do número in- finito seta que dispara sem condição (como sem saber  porquê) o piano move-se entre sombras - lenta combustão do teu peito onde  o enxofre aprende  a ser   ar ( respira o som) respira  (o som  em ti)

ciborgue

após a operação às cataratas o médico disse: as lentes são próteses d'alma transparências forjadas pelo forno da máquina na carne - vejo agora tudo                                &além tudo  (objectos deixaram de ser objectos) a  coisa em si  sumiu do léxico              da escola                    caminho ainda por entre                                          esses sinais entre falhas do sistema onde todas as linguagens falam entre si - porquê a palavra sonora quando o corpo se funde com um chip? olho uma cadeira... penso em voar.                (cadeiras deixaram de ser cadeiras     ...

a distância mais curta

Anatomias A distância mais curta entre nós é uma ferida limpa. Um corte que não sangra, mas pulsa, como um animal preso no escuro. Falo contigo como quem tenta não acordar um morto ou provocar um espelho. A tua ausência ganhou densidade: senta-te ao meu lado, respira por mim, toca os meus ombros com dedos de ar. Escrevo como quem tenta manter a própria pele: letra por letra, riscando a página como se fosse chão. Cada palavra, um fósforo. O modo simples de ver no escuro. Mulher com fósforos Não sou santa, nem sombra. Sou a mulher que segura fósforos num quarto onde tudo arde devagar. Aprendi a esperar sem tempo. Aprendi a acender uma luz sem luz. Os homens olham e pensam: ela vai incendiar tudo, mas já o fiz. Queimei nomes, camas, as palavras sonoras de dor. E não sobrou dor. Apenas o gosto a fumo na língua, e essa voz que diz: escreve, antes que tudo volte a silenciar. E então escrevo com fósforos entre os dedos, a cabeça acesa, como quem sopra vida na própria cinza. Relicário Há coisa...

a luz depois

Para P.J.C.M em memória de tudo o que muda a luz regressou                          depois sem peso         quando  os olhos rasgaram  por  mãos que                     não conheci era um       mundo diverso dos nomes      que  usava rosto cadeira  rua          árvore  sombras em água & o fundo não se movia nada mais era coisa                              nada mais era    ideia só  vibração  som antes      do  som  algo que  respondia     não com palavras mas com         o corpo  matéria luz carne       tudo isso & ainda o espaço  que expande negro      ...

mundos paralelos

  m.u.n.d.o.s. (paralelos // = a salvação) se_           f.a.r.t.o.s_ de (um)             P U F! (saltamos) 1⁰     2⁰         3⁰   (#dos olhos // #do medo // #do tempo que foge) p/ o u t r o         & o.ut.r.o             &&& (.. ) ∞→ :: ao n/gosto :: escolham → [porta] [realidade] [criação] o único            senão                     será o céu? (mas esse ri-se &diz: -  Nunca fui limite. ) F    Ô        L             E               G                  O                  ...

Homem-Megera

    (luz baixa. cadeira no centro.  um  homem entra, senta-se devagar. respira. olha para o público. ) Sabem o que é ser bicho com cara de homem? Não? Pois eu sei. Chamam-me megera, mas só porque mordo antes de ser mordido. Porque não peço desculpa por existir. Ou porque existo de um modo que incomoda. Muito. (pausa. levanta-se, anda em círculos.) Fui aprendendo, sabem? Com os anos. Com os gritos. Com os silêncios. Aprendi que mostrar sentimento é convite ao tiro. Que chorar é abrir ferida numa sala cheia de predadores. Que amar… amar é um jogo com regra escondida. E perdi cedo. Muito cedo. (olha para o chão. depois ergue a cabeça. fala  com dureza .) Então vesti espinhos. Armei os olhos. Endureci as mãos. Fiz da voz um casaco grosso. Agora dizem: Tu és bruto . Tu és frio . Tu és o problema . Mas não estavam lá, pois não? Quando me ensinaram que um homem não treme. Um homem não quebra. Um homem engole. Um homem cala. Um ...

país rectângulo

  sou um pigmeu país rectângulo, desenhado a régua cega num teste de geografia errada a culpa? do miúdo, claro. ou da professora - quem sabe? que me ensinou a ser nação com letra minúscula sílaba torta, alfabeto impróprio, versão pirateada do latim, subtitulada em ressentimento sou um país em nota de rodapé vulgar nos gestos, épico nos jantares de tascas herdei memórias como quem herda louça lascada  com orgulho! diz o povo entre duas invejas e três novelas sou mapa de feriados, onde os miúdos pintam com lápis de cera e depois atiram o desenho pela janela quando chega o teste de matemática tenho hinos que ninguém sabe de cor, e estátuas que ninguém visita sou gloriosamente pequeno, especialista em saudade e medalha de ouro no campeonato europeu, profissional de desculpas históricas mas ainda assim, com um peito inchado e mesmo com ar reciclado, digo: Aqui ninguém manda! senão Bruxelas, o FMI & os mercados & os mesmos de sempre com fatos...

cegueira

  (luz baixa. um único foco. silêncio tenso. a voz entra crua, lenta, como quem mastiga palavras com os dentes partidos) VOZ (seca, directa) P enso que não cegámos . Não. (pausa) cegar exige uma tremenda disciplina. isto é pior. isto é - ver demais. ver até cegar por dentro. (luz estala. ruído de fundo. fragmentos de imagens proje c tadas: rostos, fogo, mar) VOZ (mais urgente) vemos. vemos tudo. vemos tanto que nada vemos. pupilas dilatadas de tédio. excesso. (batida seca. s ilêncio) VOZ (ritmada, crítica): passa um homem a arder. - deslizas o dedo. passa um corpo no mar. - clicas no écrã o ícon de um coração. passa a fome. o ódio. a guerra. as crianças decapitadas. um cão de pernas partidas. - partilhas. mas não vês. (a luz pisca. um eco atravessa a sala : "não vês, não vês, não vês…") VOZ (mais baixa, como um sussurro frio) vemos como quem respira fumo e chamamos-lhe ar. vemos com olhos intactos e corações exaustos. a retina t...

hora de ponta

1.                 a multidão acolhe o céu aberto  contra o vidro    o tempo elástico encolhe     o silêncio & empurra       a pressa do mundo o rio não afaga           as suas margens 2.               a vida é o metro                  círculos lentos estações intensas    viagens sonoras          em pressa o corpo se apaga              no chão quebra o invisível             & assim cala a  meio a vida  3.         hora de ponta o sangue nos     ossos encovados os olhos        nos ombros  a língua pastosa a recitar horas     o tempo a mastigar sobras      olhare...

quimeras na bagagem

  para A. 1. o amigo partiste em silêncio como quem respeita  o peso das palavras      não houve adeus somente a ausência   tomando de um gole  seco inteira a casa  colecionavas quimeras não como quem  foge, mas como quem insiste   guardavas sonhos em cadernos gastos     papéis soltos menores do que silêncio     caixas em madeira cheirando a cinzas falavas de coisas desconhecidas para o mundo:       um peixe que voava reflectindo a lua     uma estrada que levava até a infância     um amor que não cobrava  passagem      enquanto todos reclamavam provas -      trabalhavas o malabarismo  do encanto:      curvas sem tempo pequenos gestos   agora que partiste - repouso  inquietas     as quimeras presas em meus bolsos não sei o que fazer com elas -  algumas    ainda serpenteiam pelas veias ...

quanto baste

A deram-me um nome raso &tanso ficaram por aí. E o preço foi claro ter esses: - os trabalhos & os dias contados por o que estava agora a ocorrer. Crescer era esgravatar contra o tijolo gastar unha afiada B o nome não podia exceder pesos nunca podia ter salvo o homo sa- piens de arrotar cinza, o silêncio do génio na garrafa &ninharices C caminho ainda com nome & raiz &só as poeiradas  me conhecem causam coceira chata no sapato  &roteiros tão leves quanto baste

bric-à-brac

  dizias - o bar estava aberto sem. vergonhas  enquanto os sábios as rotinas despertavam  lá fora & dentro ias emborcando pro.fecias promessas com um sabor amargo a. vidros   amor era a mulher rindo distante o vestido barato tecendo o velho corpo de hábitos & hálitos e eu - quem diria - um cão vadio de aço &febre a latir a nomes sem calendário o som morria entre copos partidos a dança recolhia cacarias para quaisquer sucateiros embora sem conserto nem despedida onde o sangue teimava em .ser. mel que se. bebia o amor era a anedota do dia. dessas de que ninguém se lembra. &ri. sempre - vai rindo a dor é menor - quando o álcool bate forte nos olhos era assim. quando. sabia. &dizias haver sempre crédito. sem débitos. na vida

Vésperas

1º acto   ao entrar p’la loja baptizada  como chique em meu bairro  ninguém falava de bombas a promocão das cuecas era o tema visceral da situação 2º acto       escolhi o par mais insignificante   estampado a pombas brancas                      sobrevoando céus  sem negrume ou silheta de inquie taç        ão 3ºacto        a  vendedora exibindo o bigode     disse algo sobre                          algodão macio                       mas eu pensava no aço    da morte  a mentira em linha recta                         dos poderosos   4ºacto  o tecido leve pareci...

Lisboa

  Todas as      ruas conduzem ao Tejo, conduzem   a nada,   as pedras,  os sonhos,     um eco                     volante. Quem disse: Lisboa, Tejo e T udo ?   Paredes murmuram cada estória do mar,   o horizonte se fecha - o silêncio profano navega o vazio: - gaivotas traçam o grito    no céu, mapa jamais desenhado: - Paleta de humores, dias de sol e chuvas, roteiro d’almas em rasgos de tintas, um diário de uma cidade onde até o ar se torna ilusão cada vez que respira. Quem és Lisboa se não labirinto? Cada presente é 1 passado   onde cada esquina é um lembrete de que, mesmo até ao Tejo, não se chega sem ter olhos bem abertos. Essa, a eterna viagem,  brisas ancestrais por essas ruas levam ao Tejo, as suas veias tecendo o ardil de nós mesmos, vozes na praça, marcas, pass...

caquistocracia

     Sente-se. Está sentado?                 Você é um idiota.    Repito: você é um idiota.            o peso do N-O-M-E  agudo.                      Sou um idiota ? Nega que o seja?                     I-d-i-o-t-a, fixe bem as letras.       Quanto mais foge, mais a luz mente.       Negar o que o é? Mais erros comete.            Idiota, de pequenos poderes por     encomendas de gaveta        o diário de bordo da nau catrineta        a última edição revista do manual       da caquistocracia, a companheira I deal de  todos os pequenos  I s in-soletrados & sorri-           dentes.    ...

O Robô

1.  hoje c omprei um sonho     de metal frio p ara um         amigo de riso vazio 10.      s e tem desejos não é      o meu tema:   todo mistério guarda     o seu dilema 11.              q ue desvende                    a máquina         a vida escondida               100. a força crua:          o silêncio vivo o seu motor      

A Paragem

         havia um café chamado A Paragem             exactamente atrás de      uma paragem de   autocarro O vapor no vidro marcava o instante um lugar breve Estórias no ar difíceis                   de calar    Através do vidro o mundo  passava Nas mãos   um café arrefecia  lá fora a espera nunca parava  a pausa era o que ali habitava            O cheiro forte da rua nunca parava       uma prisão entre dois cais  uma paragem mais longa que    a vida onde o tempo      não buscava sinais Havia um café escuro vazio  perdido  atrás da paragem esquecido       pelos dias Os homens calados        bebiam rotinas    lá fora o autocarro cuspia ...

entre ruínas

      o casal posa entre ruínas    quietas. o menino distorce              o riso a careta de cal     &o tecto cai sobre     aristóteles que vive ainda     na sarjeta: (ou será outro)      pensa: - a quem      importa o génio  do axioma?      lá fora o mundo é um cão         sem dono aqui importa o fogo inato:    a vida inteira numa risada    feliz o filho &  claro o caos