cegueira

 

(luz baixa. um único foco. silêncio tenso. a voz entra crua, lenta, como quem mastiga palavras com os dentes partidos)


VOZ (seca, directa)


Penso que não cegámos.
Não.


(pausa)


cegar
exige uma tremenda disciplina.
isto é pior.
isto é - ver demais.
ver até cegar por dentro.


(luz estala. ruído de fundo. fragmentos de imagens projectadas: rostos, fogo, mar)


VOZ (mais urgente)


vemos.
vemos tudo.
vemos tanto
que nada vemos.
pupilas dilatadas de tédio.
excesso.


(batida seca. silêncio)


VOZ (ritmada, crítica):


passa um homem a arder.
- deslizas o dedo.
passa um corpo no mar.
- clicas no écrã o ícon de um coração.
passa a fome.
o ódio.
a guerra.
as crianças decapitadas.
um cão de pernas partidas.
- partilhas.
mas não vês.


(a luz pisca. um eco atravessa a sala: "não vês, não vês, não vês…")


VOZ (mais baixa, como um sussurro frio)


vemos como quem respira fumo
e chamamos-lhe ar.
vemos com olhos intactos
e corações exaustos.
a retina tornou-se uma parede.
a parede um conforto.
o conforto uma prisão.


(silêncio. pausa longa. respiração pesada.)


VOZ (firme, cortante)


Penso que não cegámos.
não há desculpa.
não há sombra.
não há deus.
não há milagre.
há olhos.
há escolha.
há culpa.


(luz vermelha. começa um som como uma batida cardíaca)


VOZ (em crescendo)


Cegos que veem.
cegos que, vendo,
fecham os olhos.
treinados.
exaustos.
viciados em não-ver.


(projetam-se palavras na parede, rápidas: ESCOLHA. CULPA. SILÊNCIO)


VOZ (num tom quebrado, como quem grita por dentro)


às vezes,
atravessa-nos
um nome.
um grito.
um morto.com nome.

repito: 
com nome.
mas depois.
desligamos.
seguimos.
esquecemos.
Cegos que, vendo,

não veem.


(longa pausa. apenas o som de respiração. a batida cardíaca pára.)


VOZ ( baixa, quase inaudível)


penso que estamos cegos.

Cegos que veem, Cegos que,
vendo, não veem
e o pior -
é sabê-lo
e continuar.


(a luz apaga-se. silêncio. finale)

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