a distância mais curta
A distância mais curta entre nós é uma ferida limpa. Um corte que não sangra, mas pulsa, como um animal preso no escuro. Falo contigo como quem tenta não acordar um morto ou provocar um espelho. A tua ausência ganhou densidade: senta-te ao meu lado, respira por mim, toca os meus ombros com dedos de ar. Escrevo como quem tenta manter a própria pele: letra por letra, riscando a página como se fosse chão. Cada palavra, um fósforo. O modo simples de ver no escuro.
Mulher com fósforos
Não sou santa, nem sombra. Sou a mulher que segura fósforos num quarto onde tudo arde devagar. Aprendi a esperar sem tempo. Aprendi a acender uma luz sem luz. Os homens olham e pensam: ela vai incendiar tudo, mas já o fiz. Queimei nomes, camas, as palavras sonoras de dor. E não sobrou dor. Apenas o gosto a fumo na língua, e essa voz que diz: escreve, antes que tudo volte a silenciar. E então escrevo com fósforos entre os dedos, a cabeça acesa, como quem sopra vida na própria cinza.
Relicário
Há coisas que não se deitam fora: uma caixa de madeira com botões, um bilhete com a caligrafia torta, um fio de cabelo desconhecido. Colecciono pedaços, não por saudade, mas por instinto: sou animal que esconde o osso mesmo depois de não ter fome. Chamam-me viúva sem corpo, mas sei: há luto que não precisa de morte. O poema, sim - é um relicário. Não reza. Não salva, mas guarda.
Cartografias
Dei nomes aos vazios para não enlouquecer. Este é o espaço onde rias. Este, o chão que pisavas. A cidade continua, mas é outra. A mulher que a habita, é outra também. Dias há que penso ter inventado tudo. É então que lembro: o corpo não mente. Guarda. Aponta o mapa, a estrada, mesmo quando sei que não vou por aí. E aqui estou - a escrever o contorno do que foste, não para te reviver, mas para não desaparecer contigo.
Exorcismo
A palavra não te chama. A palavra possui-te. A tua ausência plena dentro dela, como um animal hibernando sob a língua - um gesto, uma falha no tempo, uma brecha - onde ainda lês, onde ainda sonho a ler-te o que escrevo. E nesse instante, somos dois corpos habitando o lugar: a cicatriz e o corte da ferida. A distância mais curta entre tu e eu é este página limpa, a luz cruza o tempo e cega o nome em forma de sílabas.